quarta-feira, 2 de julho de 2014

POESIAS DE MÁRIO CABRAL

                 A VOLTA
                   
Vencido e exausto à casa volto.  E vejo                 
a sombra amiga dos beirais vermelhos.
Atravesso o jardim e a terra beijo,
peregrino a rezar, assim, de joelhos.

Abro a porta de leve.  Hesito.  Arquejo.
E junto à face morta dos espelhos
julgo rever meu Pai – sonho ou desejo? –
na velha casa dos beirais vermelhos.

O pranto me domina... É o mesmo teto,
a mesma sala em que vivi,  outrora,
cercado de carinhos e de afeto.

E corro, então, aflito e adiante abraço,
abraço minha Mãe – que também chora –
E me faz descansar em seu regaço.


    
           INTEMPORAL

A dor, o suor, a mágoa, o desalento,
o silêncio da noite, o longo espaço
marcam dentro de mim o tempo e o vento
no sangue a rebentar.  Em cor e traço,

de mágico desenho , esse lamento
de músculos e nervos.  Passo a passo
desejo o que não sinto – amargo advento
de negras asas sobre a luz! Cansaço

de tanto aventurar , cada momento,
no céu, no mar, no amor, quem sabe?, alento
para viver em desespero .  E o faço

sofrido, quase insano, e, assim, violento,
grito – bem alto – o horror desse tormento
à estrela morta que não mais abraço...



   A MOÇA E A CIGARRA

A tênue luz da tarde, calma e bela,
o jardim verdejava, resplendente!
E havia a moça triste na janela
e um pé de manacá à sua frente.

Rasgando a sombra morna junto a ela
surgia o canto, estrídulo, fremente,
da cigarra boêmia... E a tarantela
enchia, o fim da tarde, de repente.

Era assim no verão...Até que um dia
a cigarra se foi... Morreu, por certo,
por excesso de amor ou nostalgia.

E desde então essa visão persiste:
o  pé de manacá ficou deserto,
e, mais triste, à janela, a moça triste...


     
         O VELHO AMIGO

Você, meu velho amigo, que relembro
à  luz da tarde calma em que descanso.
Vai longe a mocidade...  Esse desejo
de  glória a navegar em mar sem fim.

Seus olhos, seu semblante, seus cabelos,
refletem, quais os meus, o tempo e a vida.
A estrada é rude e a solidão fareja,
indiferente, em torno de nós ambos.

Sinto vontade em tê-lo,  aqui, ao lado,
recordando o passado, a luta, a marcha,
nas raízes das coisas que sonhamos.

Você, meu velho amigo, estrela e arrimo!
E cujo nome eu levarei, comigo,
para a sombra da noite que vem perto...

  

              A FUGA

Fugir de ti, fugir do mar, fugir
do próprio coração despedaçado,
pela maldade em turbilhão medonho.
Fugir de ti, fugir do mar, fugir

de tudo que recorde a tua boca
com  ressábio de mel e traição.
Fugir dos teus cabelos que drapejam
qual  bandeira de luto e de pecado.

Correr, fugir, transpor todos os vales,
escalar, nessa fuga, altas montanhas
que tocam céu deserto, indiferente.

Fugir enquanto reste alento e vida!
Embora essa visão seja presente
à sombra da agonia derradeira...


   
                      VENEZA

Eis-me aqui a teus pés! De novo, deslumbrado,
à graça emocional de tua essência rara.
E a Praça de São Marco – o presente e o passado –
refulge a placidezque vem da tarde clara.

És flor do mar aberto, exótica, morrendo
de saudade e tristeza e completo abandono.
E as gôndolas, o fausto e o campanário vendo
sinto a mágoa envolver a teia do meu sono.

Tens armas e brasões e mistérios fatais
oh cidade perdida! E o bom senso me foge
ao rever o esplendor do Palácio do Doge.

O luar dissolve prata em volta dos canais!
E Veneza agoniza, heráldica, lembrando

luxo, veneno, amor e seios nus sangrando.

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